Algum tempo atrás, logo depois da decisão do STF sobre a recepção da Lei Complementar nº 51/85, que trata da aposentadoria dos policiais civis, resolvemos fazer uma discussão aprofundada a respeito do art. 1º, inciso I, desta Lei, assim descrito:
“Art.1º – O funcionário policial será aposentado:
I – voluntariamente, com proveitos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial;”
Conforme se observa, esse artigo especifica dois requisitos para que o policial possa se aposentar voluntariamente:
1) Possuir pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial;
2) Possuir 30 anos de serviço.
Hoje em dia, todos os mapeamentos das condições de trabalho e de saúde, feitos por entidades que estabelecem o grau de exposição dos trabalhadores a atividades laborais adversas, informam que a atividade policial não é só seguramente uma das mais estressantes e prejudiciais à saúde, senão a mais prejudicial.
Em mapeamento realizado há alguns anos pela Fundacentro, aqui no Espírito Santo, publicado em edição nacional, essa Fundação constatou que a atividade policial é desenvolvida sob condições naturais altamente agressivas à saúde desses trabalhadores, deixando pesadas sequelas para toda a vida.
E os policiais possuem uma diferença básica em relação a todos os demais trabalhadores que labutam em condições altamente lesivas à saúde: todos esses demais trabalhadores, ao fim de um dia de trabalho, vão para suas residências e se desligam integralmente de suas atividades laborais… Exceto os policiais!
Os policiais largam um dia de trabalho e continuam sendo policiais em suas residências, nas ruas, no descanso, etc. Os vizinhos sabem que aquele cidadão é policial e que pode ser, como de fato o é, acionado mesmo em suas horas de descanso. Mesmo em suas residências, fora do horário de trabalho, o policial nunca deixa de estar alerta, pois sabe que pode ser chamado a uma intervenção a qualquer momento. Além disso, os policiais devem manter diuturnamente um cuidado especial em relação às suas famílias, sempre expostas ao abandono estatal e que dependem única e exclusivamente da vigília do próprio policial.
Observa-se pela redação do art. 1º da Lei nº 51/85, que essa Lei considerou a atividade policial como inclusa naquelas que ocasionam um risco médio para a saúde dos integrantes da categoria, numa comparação com a legislação da iniciativa privada. Isso porque a legislação aplicável a esses casos divide as condições especiais que prejudicam a saúde em: mínimas, médias e máximas.
Para as condições máximas de prejuízo, o tempo máximo de serviço exigido para a aposentadoria diferenciada é de 15 anos; para as condições médias, o tempo é de 20 anos e para as condições mínimas o tempo é de 25 anos. Portanto, ao exigir o art. 1º da Lei Complementar nº 51/85 20 anos de atividade em cargo de natureza estritamente policial, essa lei considerou, implicitamente, como médias as condições lesivas à saúde dos policiais. E considerou ao arrepio de todos os estudos atuais que atestam as atividades policiais como as mais estressantes, devendo ser enquadradas no grau máximo.
Na verdade, o Estado nunca ligou para esse tipo de discussão, sempre tendo deixado os policiais ao abandono e aos movimentos paredistas para buscarem um mínimo respeito aos seus direitos. Dessa forma, não há legislação específica tratando desse assunto na seara pública.
Para os trabalhadores da iniciativa privada, a Lei nº 8213/91 e a legislação específica definem os prazos máximos para concessão da aposentadoria especial dos trabalhadores submetidos a condições diferenciadas, estipulando em 15 anos como grau máximo, 20 anos como grau médio e 25 anos como grau mínimo de exposição a agentes nocivos e/ou condições prejudiciais à saúde:
“Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)”
Já para os policiais, aplica-se o disposto no art. 40, §4º, da Constituição:
4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005)
I portadores de deficiência; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005)
II que exerçam atividades de risco; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005)
III cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005)
Notem que os policiais estão inclusos nos dois incisos do art. 40, o inciso II e o inciso III, ao mesmo tempo, tratando-se de uma categoria que merece um tratamento ainda mais diferenciado, pois se encontra exercendo tanto atividades de risco como atividades sob condições especiais que prejudicam a saúde e a integridade física.
E notem que a Lei Complementar que estipula um tratamento diferenciado relativo às aposentadorias dos policiais é a Lei Complementar nº 51/85, conforme determina o art. 40 da CF. Não se trata de uma lei específica que versa sobre atividades de risco e/ou sobre condições especiais prejudiciais à saúde ou à integridade física, mas é a Lei que deve ser aplicada à categoria, na falta de lei específica.
Observem, ao contrário do que impõe a Lei Complementar nº 51/85, que nada mais se exige do trabalhador submetido às condições especiais, a não ser o cumprimento do tempo exigido para que requeira sua aposentadoria, quando se encontra sob condições de risco ou prejudiciais.
Em nenhum caso no serviço público ou na iniciativa privada pode-se exigir nada mais do trabalhador que não seja o cumprimento do tempo de trabalho sob as condições especiais que prejudiquem a saúde do trabalhador.
Em nenhuma legislação, em lugar nenhum no mundo, se exige nada mais do que isso… A NÃO SER PARA OS POLICIAIS CIVIS BRASILEIROS! Essa categoria sempre tem que ser objeto de algo fora do comum; algo que não se adota em lugar nenhum do planeta! Algo totalmente fora de bom senso e, como sempre, prejudicial a esses trabalhadores.
A Lei Complementar nº 51/85 impõe um grau médio para os riscos e prejuízos à saúde sofridos pelos policiais, estipulando o tempo de 20 anos sob o exercício dessas atividades, e, de forma totalmente inconstitucional, impõe que, além desse tempo, os policiais trabalhem mais 10 anos a troco da exploração estatal.
Dependendo do ângulo que se olhe, a Lei Complementar nº 51/85 disse mais ou menos do que a Constituição lhe impôs. Mais, porque estabeleceu critério diferenciado preconizado no art. 40, e tratou de tempo de aposentadoria sob condições especiais de forma genérica; menos, porque estabeleceu o grau de risco e de prejuízo a saúde dos policiais como médio, mas se omitiu ao estipular tempo de 10 anos além das condições especiais, sem expurgar essa exigência absurda não cobrada de qualquer outro trabalhador submetido às mesmas condições.
De todos os demais trabalhadores submetidos a idênticas condições a que se submetem os policiais exige-se apenas que cumpram o tempo de trabalho sob as condições de risco ou prejudiciais à saúde. Cumprido esse tempo, adquirem as condições para que tenham o direito à aposentadoria. Mas, para os policiais, o Estado ainda cobra mais 10 anos de serviço no próprio Estado ou na iniciativa privada.
Um trabalhador de uma mina de carvão cumpre seus 15 anos, e vai se aposentar. Um trabalhador que lida com raios X, idem. E assim sucessivamente… Mas, os policiais cumprem todo seu tempo sob o risco e sob as condições prejudiciais à saúde, e ainda têm que trabalhar mais 10 anos de “serviço extra”. Algo surreal!
Então, temos o seguinte: o policial atinge seus 20 anos de polícia e continua trabalhando como policial até atingir os 30 anos de serviço. Ou seja: permanece mais 10 anos sob risco e sob condições prejudiciais à saúde, de forma totalmente ilegal, inconstitucional e exploratória do seu trabalho e dos seus direitos. E esses 10 anos a mais de trabalho forçado são contados como atividade comum, sem qualquer risco. Algo inacreditável!
A Justiça de São Paulo determinou dias atrás que um policial fosse aposentado contando apenas seu tempo de polícia, sem qualquer outra condição. Entretanto, aplicou o tempo de 25 anos de polícia, considerando a atividade policial como de grau mínimo, contrariando todos os estudos e provas sobre esse tema. Ainda é muito pouco para uma categoria tão sacrificada.
Enfim, como o texto está muito longo vamos interrompê-lo por aqui para raciocinarmos, voltando a discuti-lo desse ponto em diante em outra oportunidade.
Antônio Tadeu Nicoletti Pereira
Presidente da APPES