ENTREVISTA Prova Pericial
Luís Fernando de Moraes Manzano
Quais são os sistemas quanto à apreciação de prova no Brasil?
Quanto à apreciação da prova, o Brasil adota, precipuamente, o sistema do livre convencimento ou da persuasão racional, porém não puramente, na medida em que outros sistemas coexistem àquele. Assim, em regra, o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (art. 155, caput, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008), mas exporá os motivos que o levaram a tal decisão (art. 93, IX, da CF). No júri, porém, vigora o sistema da íntima convicção, em razão do sigilo das votações (CF, art. 5º, XXXVIII, b). Além disso, há reminiscências, no Código de Processo Penal, do sistema da prova tarifada (CPP, art. 155, Parágrafo único, e art. 158). O processo civil, ao seu turno, também adota o livre convencimento (art. 131 do CPC) com temperamentos, como ocorre no caso das presunções legais absolutas (art. 334, IV, do CPC). O art. 335 do CPC subsume-se ao sistema da prova legal.
Há subjetividade na prova pericial, mesmo tendo um caráter técnico-científico?
A conclusão do perito – assim como a versão de uma testemunha – é sempre subjetiva. É um equívoco pensar que a perícia, por ser prova técnica ou científica, seja exata, não sujeita a subjetividade. Toda perícia resulta da interpretação de um técnico ou profissional sobre alguma coisa ou alguém por ele examinado. Sujeita-se, pois, a juízos valorativos, preconceitos, subjetivismos. A verdade científica pode ser comprovada pelo método experimental; mas a reconstrução histórica do fato, que se faz pela prova, no processo, é indemonstrável e, pois, probabilística, aproximativa, possível, relativa, dialética. Os raciocínios jurídicos são dialéticos, conducentes ao provável, ao verossímil, em que, como já mostrara Aristóteles, exercita-se a “argumentação”.
Como o senhor entende a controvertida posição de alguns doutrinadores sobre a natureza jurídica da perícia?
A natureza jurídica da prova pericial sempre foi convertida. Dois entendimentos se formaram. Alguns autores sustentam que a perícia é meio de prova, isto é, meio de produção de prova. Outros autores entendem que a perícia ilumina a prova. A discussão, a meu ver, não tem razão de ser. Os dois entendimentos estão corretos. A perícia como prova técnica ilumina a prova. Consiste em exame realizado por técnico (perito), que utiliza sua experiência para, na função de auxiliar do juiz, explicar ou apontar a fonte ou o elemento de prova, sendo este, os vestígios materiais, corpóreos, juridicamente relevantes para o acertamento do fato e que falam por si. A perícia como prova científica constitui meio de prova conducente da fonte ao elemento, a partir de um princípio científico, mediante a aplicação de procedimento técnico adequado. A característica fundamental da perícia como prova científica, e que a distingue dos demais meios de prova, é que ela se vale de um princípio científico aplicado por meio de técnica adequada, cujo conhecimento escapa, via de regra, ao domínio dos aplicadores do direito, mas que é essencial ao acertamento do fato e o deslinde da causa.
Qual seu posicionamento acerca da dispensa do exame criminológico, prevista na Lei nº 10.792/2003?
O art. 112, caput e § 2º, da Lei de Execução Penal, a partir da Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, dispensou a realização do exame criminológico para aferição da satisfação do mérito, isto é, do requisito subjetivo necessário à obtenção – concessão – dos benefícios da progressão de regime, livramento condicional, do indulto e da comutação de penas. A dispensa não foi uma solução primorosa e, por isso mesmo, muito criticada; buscou resolver, da melhor maneira possível, um problema de ordem prática: como os laudos eram muito aprofundados e os exames, reclamados no juízo de apreciação de cada benefício, para cada condenado, as Comissões ficaram assoberbadas de trabalho e o excesso de trabalho acarretava excessiva demora no atendimento das requisições judiciais. Em muitos casos, quando o laudo aportava nos autos, o condenado já preenchia o requisito objetivo para um novo benefício, e então, novo exame havia de ser exigido? A despeito do grande valor do exame criminológico, a nova lei dispensou-o, no intuito de acelerar a apreciação dos pedidos de concessão dos benefícios. A medida revestiu-se de dupla valia: foi sensível ao legítimo interesse dos condenados e, ao mesmo tempo, contribuiu para o desafogo dos estabelecimentos prisionais. O Superior Tribunal de Justiça compatibilizou os interesses conflitantes, ao averbar: “Muito embora a nova redação do art. 112 da Lei de Execuções Penais, dada pela Lei 10.792/2003, não exija mais o exame criminológico, esse pode ser realizado, se o Juízo das Execuções, diante das peculiaridades da causa, assim o entender, servindo de base para o deferimento ou indeferimento do pedido. (Precedente). Recurso provido” (STJ – 5a. Turma – REsp nº 833.567-RS – Rel. Min. Félix Fischer – j. 19-0-2006, v.u. – DJU 2-4-2007, p. 303).
Quais são as consequências práticas da falta do exame de corpo de delito no processo?
Excepcionalmente, ou seja, nos crimes contra a propriedade imaterial e nos crimes de tóxico, em que, a par da fórmula genérica contida no art. 158 do CPP, por força do art. 525 do CPP e do art. 50, § 1º, da Lei de Tóxicos, resulta que o laudo condiciona o exercício da ação. Trata-se, pois, de questão de ordem processual, condição específica de admissibilidade ou procedibilidade da ação penal, pelo que a falta acarreta nulidade, nos termos do art. 564, III, b, do CPP. Por outro lado, para os crimes, em geral, que deixam vestígios materiais, o laudo de exame de corpo de delito é indispensável, não o suprindo sequer a confissão do acusado; nesses casos, porém, a lei não reclama a juntada do laudo como condição para que a denúncia ou queixa seja admitida, pelo que o laudo constitui simplesmente a prova da materialidade delitiva, é matéria de prova e, pois, concerne o mérito (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8a. edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 177), pelo que a falta do laudo enseja a conversão do julgamento em diligência, com fundamento no art. 156, II, do CPP, para que se proceda à realização do exame ou para que se cobre a vinda do laudo, sob pena de absolvição, por insuficiência de prova da existência do fato, com fundamento no art. 386, II, do CPP, salvo se, não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal puder supri-lo (art .167), ao crivo do livre convencimento do juiz (art. 157).
Como é a situação de previsão legal do procedimento probatório pericial?
A despeito das regras previstas no Código de Processo Penal e na Legislação Extravagante, não existe uma disciplina específica acerca do procedimento probatório a ser adotado para todas as perícias, máxime aquelas surgidas em razão dos avanços tecnológicos e que, pois, não estão sequer nominadas em lei, como a perícia de voz, para a comprovação da autoria do diálogo captado eletronicamente; o exame de DNA, para comparação de material genético do acusado com material genético encontrado; perícias em discos rígios, e assim por diante. Mesmo quanto às perícias nominadas e sobre as quais o Código ou a lei especial preveja uma certa regulamentação, o procedimento técnico envolvido não se encontra disciplinado. Tal constatação remete à questão sobre a admissibilidade da prova técnica e científica no processo que, por seu turno, está ligada à aceitação da prova atípica.
Qual a consequência da atipicidade da prova pericial?
À míngua de previsão legislativa ou administrativa do procedimento técnico e do princípio científico subjacente, a análise da confiabilidade de cada prova pericial é relegada ao juiz. Surge então o problema da admissibilidade e assunção da prova pericial no processo. Note-se que este problema está intimamente ligado à atipicidade desse meio de prova. É dizer, se a perícia fosse prova típica, a dizer que seu procedimento técnico estivesse disciplinado em lei, nenhuma dificuldade teria o juiz em admiti-la no processo. Justamente pelo fato de ser atípica é que o juiz deve se resguardar, no exercício de sua função degatekeeper, municiando-se de alguns critérios ou requisitos de admissibilidade da prova pericial, para evitar o acesso ao processo de elementos de prova não confiáveis. Disso decorre a importância de se buscarem critérios ou requisitos objetivos de admissibilidade – e confiabilidade – da prova técnica e cientíica que municiem o juiz nessa difícil tarefa de evitar que o processo seja contaminado por pseudo-ciências.
Em relação ao empréstimo de laudos entre processos, como a questão é vista pela doutrina e jurisprudência?
Alguns autores defendem que o empréstimo do laudo de um processo para outro demanda que o contraditório no processo originário tenha sido instituído perante o mesmo juiz, que também seja o da segunda causa (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8a. edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 123). A jurisprudência, contudo, abrandou tal rigorismo, e exige como requisito de admissibilidade da prova emprestada apenas que seja produzida em processo formado entre as mesmas partes ou, ao menos, em processo em que tenha figurado como parte aquele contra quem se pretenda fazer valer a prova, sob pena de se ferir o princípio do contraditório, o que eivaria a prova de ilicitude, sujeitando-a às consequências processuais da prova ilícita.
Como se dá a aplicação do “contraditório tardio” aplicado nos casos de provas periciais?
Sempre que a perícia deva ser produzida na fase pré-processual, ela se diz antecipada, e pode, em tal hipótese, ser cautelar ou não. Muitas vezes, a necessidade de lastrear a denúncia leva à realização da perícia na fase do inquérito policial, sem que haja cautelaridade. A perícia tem natureza cautelar quando houver fundado receio de que, ao tempo da instrução criminal, terão perecido ou desaparecido os vestígios materiais deixados pelo crime ou a pessoa a ser submetida ao exame. Por outro lado, são irrepetíveis as perícias quando, ao tempo do processo, a fonte de prova sobre a qual deva incidir o exame já não mais exista, em razão de um fato objetivamente imprevisível e invencível, conhecido posteriormente. Se se vislumbra, de antemão, a priori, que ao tempo da instrução criminal a fonte de prova não mais existirá, a antecipação da perícia deve ser feita mediante contraditório judicial, valendo-se, por analogia, no que for cabível, da norma contida no artigo 225 do Código de Processo Penal, devendo o juiz facultar ao investigado e ao titular do jus persequendi in judicio a indicação de assistentes técnicos e a formulação de quesitos. Por outro lado, se o fato que tornou irrepetível a perícia somente for descoberto a posteriori, a efetividade do processo recomenda o aproveitamento da prova pericial produzida durante a investigação criminal sem o crivo do contraditório, submetendo-a, nesse caso, ao contraditório diferido, postergado, sobre a prova, justificado pelo acontecimento imprevisível.
Qual seu posicionamento acerca do conflito entre a autodefesa e o princípio da cooperação?
É discutível que o réu, no processo penal, não tenha o dever de colaborar com a justiça e a apuração da verdade. Os direitos individuais do acusado que o processo instrumentaliza não são mais relevantes que o direito da vítima e da sociedade, da qual ele mesmo faz parte. O réu tem assegurado o direito ao silêncio, isto é, de não depor contra si. Se a autodefesa pode ser levada ao ponto de recusa à submissão ao reconhecimento pessoal, à acareação, à colheita de impressões digitais e amostras de sangue é outra questão, que deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, na medida em que demanda um exercício de ponderação de valores. As liberdades individuais não são absolutas; têm sempre feitio e finalidade éticos; não podem ser invocadas em detrimento de outros direitos constitucionais, sem um exercício de ponderação. Todas as pessoas, partes ou não, têm o dever de colaborar com o Poder Judiciário na pesquisa da verdade, regra explícita no artigo 339 do Código de Processo Civil. O direito português também prevê o princípio da cooperação: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar sua colaboração para a descoberta da verdade”. Tal princípio não é exclusivo do processo civil, mas também se aplica ao processo penal.
Quais as regras para aplicação da perícia sem ferir o direito à intimidade?
Cleunice A. Valentim Bastos Pitombo advoga que “a ingerência no corpo humano […] não obstante a aparente lacuna legislativa nacional, há que conciliar as seguintes regras: (1) poder-dever estatal de perquirir sobre fatos ilícitos; (2) respeito à integridade física e moral do indivíduo; (3) indispensabilidade da intervenção; (4) proporcionalidade entre o fato ilícito e a interferência no corpo humano; (5) utilização de meios apropriados e realizada por profissionais habilitados; (6) norma legal autorizadora”. E complementa: “Sem esquecer do importante brocardo, no processo penal: nemo tenetur edere contra se (Ninguém é obrigado a produzir provas contra si). Tais preceitos defluem do sistema normativo brasileiro” (PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da busca e apreensão no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, v. 2, p. 132-133. Coleção Estudos de Processo Penal – Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida). As diretrizes traçadas pela autora são inobjetáveis; salvo quando à referência ao brocardo. O sistema constitucional brasileiro, composto do direito de permanecer calado art. 5º, LXIII), do art. 5º, §§ 2º, 3º e 4º e das decisões do Supremo Tribunal Federal de modo algum homenageia o direito à recusa de entregar a fonte de prova, quando satisfeitos aqueles requisitos. Não se trata de prestigiar o direito punitivo estatal, mas de realçar, dentro do Estado democrático, o direito à prova e, sobretudo, à busca da verdade humana e eticamente alcançável, com vistas à pacificação social. Disso não decorre que, ante a recusa, deva-se presumir a culpa; porém, nada obsta a que, no campo penal, a legislação infraconstitucional preveja consequências jurídicas para a falta de colaboração, que constitui expressão dos princípios éticos do processo.
Como fica a questão da intimidade frente as perícias realizadas a partir de amostras descartadas dos envolvidos?
Quando a amostra é colhida de material descartado (saliva em ponta de cigarro, placenta), como ocorreu no caso Glória Trevi e no caso Vilma, não se vislumbra ofensa à intimidade e integridade física da pessoa e, pois, tampouco óbice constitucional ou legal à realização da perícia.
Em geral como o senhor vê o efetivo tratamento prático do tema pela doutrina e jurisprudência?
O espectro de tutela do direito à prova no campo pericial adquire amplitude maior, pois não apenas legitima a faculdade que assiste à parte e ao juiz de produzir a prova, mas também de exigir da parte contrária que forneça a fonte de prova necessária à sua realização, sob pena de inversão do ônus da prova ou desobediência, conforme se cuide de processo civil ou processo penal respectivamente, sem que se possa invocar, em defesa, um suposto direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo. Após paradigmática decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 71373, proferida em 1994, na qual foi reconhecida a impossibilidade de condução do réu “debaixo de vara” ao laboratório para a realização do exame de DNA por ferir direitos constitucionais como dignidade, intimidade e intangibilidade do corpo humano, a jurisprudência passou a punir processualmente o investigado desidioso, interpretando contra ele a recusa injustificada. Tal entendimento culminou na edição da Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõe: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”. Assim o é na seara civil. Na esfera penal, porém, há clara resistência, na jurisprudência e na doutrina pátria, quando à legitimidade da obrigação legal de se submeter à perícia; a recusa de fornecimento da fonte material de prova encontra amparo nessa orientação que, ao seu turno, invoca o direito de não produzir prova contra si. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu, iterativamente, por “inconstitucional qualquer decisão contrária ao principio nemo tenetur se detegere, o que decorre da inteligência do artigo 5º, LXIII, da Constituição da República e o art. 8º, § 2º, g do Pacto de São José da Costa Rica” (STJ, 6a. Turma, RMS 18017/SP, Ministro Paulo Medina, DJ 02/05/2006, p. 309). Nessa esteira, Antonio Magalhães Gomes Filho, citando, em reforço a jurisprudência nacional, afirma que “essas intervenções, ainda que mínimas, é violação do direito à não incriminação e à liberdade pessoal, pois se ninguém pode ser obrigado a declarar-se culpado, também deve ter assegurado o seu direito a não fornecer provas incriminadoras contra si mesmo. O direito à prova não vai a ponto de conferir a uma das partes no processo prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de escolha da outra” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 119). De se ponderar, contudo, que o que os textos internacionais contemplam é o direito de não depor contra si, isto é, direito de não se declarar culpado, ou seja, de não produzir prova oral em seu desfavor (artigo 8º, § 2º, g do Pacto de São José da Costa Rica e artigo 14, nº 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos), o que não se confunde com o fornecimento da fonte real de prova para a realização da perícia, cujo resultado pode ser desfavorável ou favorável ao réu.
Luis Fernando de Moraes Manzano: Promotor de Justiça do MP/SP. Mestre em Direito Processual pela USP. Professor da Escola Paulista de Direito.
Fonte: cartaforense