CHRISTIAN CARVALHO CRUZ
Fonte: Estadão
Para educador, a tragédia de Realengo pode reforçar estilo bunker que já entrincheira a sociedadeUm velho apresentador de TV costumava dizer que não tinha vindo para explicar, e sim para confundir. Na quinta-feira, ainda na quentura dos acontecimentos em Realengo, o professor Julio Groppa Aquino, da Faculdade de Educação da USP, ecoava metade daquele bordão. Ele não queria explicar o atirador que matou pelo menos 12 crianças em uma escola no subúrbio do Rio e depois se suicidou. Desconfiava que explicações viriam às pencas, inevitáveis, nauseantes. E nenhuma delas nos convenceria. Na sexta pela manhã, ao responder às perguntas do Aliás, ele mantinha a vontade de não explicar e, dando passagem à outra metade do bordão, adicionava ao tema grossas pitadas de confusão (e provocação), para daí extrair reflexões e nos fazer pensar além.
O que deixa você mais indignado a respeito do que aconteceu em Realengo?
A tônica é mais de consternação do que de indignação. E consternação pelo fato de que, quando a potência da vida é banalizada a ponto de ser tratada a sangue-frio, algo de terrível parece estar se gestando entre aqueles que vivem nas grandes cidades: o medo indelével do outro. Episódios como o de Realengo parecem ser uma mostra da tensão imanente às trocas sociais na atualidade e, em última instância, uma prova de fogo para a própria democracia.
Como assim?
A escola está para a democracia do mesmo modo que a delegacia de polícia estava para a ditadura. Ou seja, delegamos à escola o trato de todos aqueles problemas sociais intrincados, os quais exigem respostas imediatas e que, antes, eram facilmente equacionados à força. Daí que hoje, quando escola e violência social se juntam no imaginário das pessoas, é a própria imagem da democracia que está em jogo, já que boa parte do que costumamos entender como convívio democrático repousa na esperança de que ensinemos as crianças e os jovens a serem cordatos, pacíficos e, em última instância, seres obedientes e resignados, não importa com o quê.
Em nosso primeiro contato telefônico você disse que estava menos preocupado com o que aconteceu e mais com o que vai acontecer. O que vai acontecer? E, sobretudo, o que não será dito?
Os acontecimentos serão intensamente processados no imaginário social do País. E muitos se valerão da ocasião para exigir mudanças, desde aquelas relacionadas ao desarmamento da população até aquelas relativas a um reforço de medidas de segurança, incluindo maior policiamento das escolas. São dois exemplos contraditórios, já que se trata de um clamor social ambivalente: diminuem-se os riscos de um lado, aumentam-se de outro. Se quisermos alguma espécie de trégua na violência, ela deverá contemplar, sobretudo, uma moderação radical da ação policial, ela própria responsável pela morte de um grande contingente de jovens, este que é o segmento social mais penalizado pela violência no País.
Duas reações ao episódio que eu gostaria que você comentasse: José Sarney sugeriu ‘segurança pública’ no currículo escolar e Cristovam Buarque falou de resgatar um projeto de lei de autoria dele que cria a Agência Federal para a Coordenação de Segurança Escolar, para ‘garantir a segurança em torno das escolas e a paz na sala de aula’.
A manifestação do Cristovam Buarque é um exemplo do que eu apontava antes: a fantasia de que um reforço do policiamento é a única saída para a manutenção da dita "paz nas escolas", o que me parece um argumento arriscado. Estaremos ensinando às crianças e jovens que só é possível conviver com seus concidadãos se houver um policial ao lado, o que, aliás, já se passa com os estratos urbanos de classe média alta, todos eles entrincheirados em seus bunkers e rodeados por seguranças. Quanto à proposta do velho ex-presidente, ela é bem conhecida de todos e igualmente arriscada: quando desponta um problema social insolúvel, que o insiramos no currículo. Desse modo, acabamos tendo uma escola que pretende ensinar tudo no que se refere ao exercício da cidadania e que muito pouco ensina sobre língua, ciências e artes. Uma saída tão fácil quanto problemática, a meu ver.
Você falou em bunker. As escolas se parecem cada vez mais com eles, não é? Grades, portões, cadeados, vigias, câmeras… Depois do que aconteceu no Rio, como evitar que esse estilo bunker se acentue nos colégios? Será o fim do ideal de integrar as famílias na vida escolar dos filhos, tornar os pais mais participativos, etc.?
O estilo bunker apenas será reforçado, já que se trata de uma realidade muito bem instalada entre nós. Por exemplo, o bunkerismo escolar da classe média (e também das residências, dos centros comerciais, das instituições privadas como um todo) é contemporâneo à instalação generalizada das películas nos vidros dos automóveis. Trata-se de uma mostra de como a ideia de segurança já está completamente enraizada no imaginário social como um serviço indispensável – vital, para ser mais preciso – a uma parcela crescente da população. O problema é que quanto mais nos isolamos do contato com as outras parcelas da população (mais numerosas, por sinal) maiores são os riscos de confronto nesse encontro, a rigor, inevitável. Ora, as escolas públicas são exatamente esse ponto de contato entre diferentes parcelas da população. E isso nada tem a ver com a maior participação das famílias na vida escolar, no sentido de pacificar esse encontro. Família e escola, a meu ver e diferentemente dos clichês habituais empregados na discussão, são instâncias sociais paralelas e incidentais, e assim devem permanecer.
Abrir fogo contra inocentes dentro de uma escola tem algum significado especial? Por que na escola e não no supermercado, na academia de ginástica, na feira, no metrô?
Se for correta a hipótese da espetacularização da violência e também a da escola como figura institucional emblemática da contemporaneidade democrática, entende-se que as unidades escolares passem a ser alvos privilegiados de ataque, quando o que está em questão é o rompimento do pacto social. O curioso é que isso costuma acontecer nos ditos países desenvolvidos, e não em países periféricos. Já aconteceu na Finlândia, no Canadá, na China e, sobretudo, nos Estados Unidos. Seria um indício do ingresso do Brasil na rota do dito desenvolvimento socioeconômico?
Na quinta-feira, nós procuramos a escritora americana Lionel Shriver, autora do romance Precisamos Falar sobre o Kevin, que conta a história de um casal que vê o filho se tornar um desses atiradores de escola. Ela não quis dar qualquer tipo de declaração, argumentando o seguinte: ‘Eu não falo mais desse assunto porque percebi que, quanto mais falo, mais as pessoas se inspiram a cometer a mesma barbaridade’. Até que ponto há imitação em casos assim?
São duas as possibilidades, antagônicas inclusive, de entendimento da questão. A primeira: não, ninguém tem o condão de ensinar ninguém a ser violento nem a ser o contrário. As pessoas são violentas ou pacíficas, e as duas coisas ao mesmo tempo, a depender de uma miríade de condições; e talvez nenhuma delas passe pela "inculcação" pedagógica de valores ou de contravalores. Portanto, tranquilizemo-nos. De outro lado, ensinamos intensamente as crianças e os jovens a se tornarem consumidores vorazes de determinados bens e serviços. Ora, a espetacularização da violência é, por incrível que pareça, um entre tantos bens culturais à disposição para consumo. O mundo contemporâneo nutre-se de violência; ela é uma moeda corrente no cinema, por exemplo, ou na internet. Daí que a questão do determinismo pedagógico sobre os atos de violência é, a meu ver, insolúvel, ou seja, não se pode precisar ao certo se estamos ensinando nossas crianças e jovens a serem violentos, ou não.
Um ex-colega do atirador de Realengo o definiu como ‘o bobo da classe’ nos tempos de escola. Diz-se que ele também sofria gozações por ser manco. O chamado bullying é de fato um desencadeador de violência?
Não há razão para imaginarmos uma escola em que não haja tensões, na forma de rivalidade e, no limite, humilhação entre os alunos. Todos sofremos esse tipo de coisa e sobrevivemos. Isso não é desejável, mas acaba fazendo parte das relações entre as crianças e jovens e, em grande medida, deles com os mais velhos. E em mão dupla, frise-se. No entanto, a epidemia do dito bullying parece ter se tornado a alegação principal da imensa maioria daqueles que, por um ou outro motivo, sentem-se em desvantagem civil, o que poderia, a rigor, incluir todos nós. Penso ser temerário e, de algum modo, demasiado fácil supor que o tal bullying seja desencadeador de atos violentos. Ao contrário, a explosão dos casos em que se alega haver bullying é uma mostra incontestável da cultura de vitimização psicologizante que vem se instalando entre nós.
Cabe aos professores identificar tendências violentas nos alunos?
Imaginar que professores deveriam fazer diagnóstico psicológico/psiquiátrico é uma aberração. Sala de aula não é consultório médico, e o alunado não é um corpo doente, portador de anomalias. No entanto, os professores demandam diagnósticos desse tipo com regularidade, o que não impede que tenhamos a educação miserável que temos. Ou seja, a resposta propriamente pedagógica para isso é nula.
Que relação as crianças sobreviventes terão com a instituição escola depois de sofrer um trauma desse tamanho lá dentro?
Prospecções dessa natureza me parecem sempre inócuas e, por isso, fadadas ao fracasso. Mais ainda, no fito de antever efeitos, elas podem causá-los ou intensificá-los. Há, por exemplo, um sensacionalismo injustificável da mídia na cobertura do evento ao entrevistar os jovens envolvidos de uma maneira que beira a irresponsabilidade, convertendo todos, eles e nós, em reféns da espetacularização. O momento exige sobriedade e certo distanciamento, à moda dos antigos, de modo que seja possível decantar as informações, e não ser assediado por elas. Se quisermos honrar os mortos de fato, precisaremos mais do que alguns minutos de silêncio. Precisaremos nos aquietar. Outra questão: nem sempre as pessoas que sobrevivem a determinado acontecimento-limite desenvolvem esse ou aquele tipo de trauma e quetais. Não esqueçamos que as crianças são resistentes. Essas, em particular, tiveram de se defrontar com a crueza máxima da vida ainda quando jovens, mas sobreviverão. Já são fortes.
O que você acha do fato de alguns pais com filhos naquela escola dizerem que não querem mais os filhos em colégio público?
Um dos efeitos mais perversos que posso intuir do acontecimento em Realengo é o fato de que, ao fim e ao cabo, é a própria escola pública que será penalizada. Como não teremos como julgar e condenar o responsável direto, temo que restará apenas a sensação de que caberia à escola ter prevenido essa tragédia. O resultado será certeiro: mais uma vez a escola pública nacional será objeto de depreciação e de estigmatização. E, se assim o for, uma nova injustiça será cometida.
Há explicação para o que aconteceu?
A meu ver, o melhor analista da questão da violência da/na escola não é um teórico, mas o cineasta Gus Van Sant, responsável pela obra mais impactante já realizada sobre o assunto: Elephant. Trata-se de uma retomada ficcional do massacre de Columbine, a partir do ponto de vista dos alunos envolvidos. Uma obra sem precedentes, indubitavelmente. O título do filme refere-se a uma parábola budista segundo a qual um grupo de cegos tenta descrever um elefante a partir das diferentes partes de seu corpo. Daí que ninguém logra ter uma visão do animal em sua totalidade, restando a cada um uma apreensão parcial, embora se imagine generalizante. Com isso, quero dizer que, a despeito de toda a tagarelice explicativa que virá à tona, as razões do que se passou em Realengo permanecerão incógnitas. Aos que creem no sobrenatural, cabe rezar pelos que se foram. Aos demais, resta-nos apenas um nó na garganta, um nó que não desata.