Preceitua a Constituição, em seu art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Os meios e recursos, conforme se retira do texto constitucional, estão diretamente ligados à ampla defesa. Exatamente por isso, o uso da expressão “a ela inerentes”, contida em seu inciso LV, no art. 5º.
E o que se entende por contraditório e ampla defesa no processo administrativo? No mínimo, que ambos devem ser feitos por pessoas tecnicamente conhecedoras do Direito, principalmente do Direito Administrativo, que é um dos mais complexos por não trazer normas claras, escritas e explícitas.
E as pessoas que são tecnicamente conhecedoras do Direito, a ponto de terem condições de enfrentar uma batalha campal contra o Estado nos processo disciplinares, em que o Estado a tudo pode, e os acusados nada podem, se chamam advogados.
Além disso, a quase totalidade das normas que tratam de processo administrativo disciplinar dos policiais (Estatutos dos Policiais) são anteriores à atual Constituição, draconianas e feitas no auge da ditadura militar. Quase todos os Estatutos são compostos de normas disciplinares surreais, dúbias, tendenciosas e talhadas para submeter e reduzir o cidadão ao nada!
Mesmo diante dessas aberrações, com a categoria vindo sendo submetida ao longo dos anos a verdadeiros tribunais de exceção, ainda soprava uma esperança, pois se podia recorrer ao final à Justiça, vislumbrando-se uma tênue possibilidade de reverter as arbitrariedades cometidas pelo Estado, no âmbito do Poder Judiciário. Tênue possibilidade, frise-se!
Até que o Supremo Tribunal Federal – STF resolveu editar a malfadada Súmula Vinculante nº 5, pouco tempo atrás. Diz essa Súmula: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.
Seguindo essa mesma linha e aplicando a Súmula Vinculante nº 5 do STF, o Superior Tribunal de Justiça – STJ não anulou recentemente um processo que culminou com a demissão de um servidor publico, nesta semana (08/12). E o entendimento anterior também sumulado do STJ era o seguinte: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.”
O Estado já faz o papel de acusador, de produtor de provas e de juiz ao mesmo tempo, nos processos disciplinares. E a partir da Súmula Vinculante nº 5, passou a fazer o papel de defensor. Acusa, produz provas, defende e julga. É onipresente!
Como a situação muda do dia para a noite no Brasil!
Segundo os doutrinadores:
“O Processo Administrativo pode ser compreendido como gênero do qual se originam várias espécies, como o processo disciplinar, processo tributário, processo de expediente etc. Todos eles estão submetidos não só aos clássicos princípios do Direito Administrativo (art. 37, CR/88), como também a outros conforme dispõe o caput e os incisos do Art. 2º da Lei 9.784/99 (A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.). Vejamos os princípios:
1. Princípio do Devido Processo Legal(Art. 5º, LVI, CR/88 – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;) – esse princípio é uma decorrência do princípio da legalidade, portanto, todo processo administrativo deve ter por fundamento uma norma legal específica, sob pena invalidade.
2. Princípio da Verdade Real– a verdade real consiste na busca pelo o que realmente aconteceu. Bem diferente da verdade formal, que é aquela produzida no processo civil. Apesar de ser mais usada no processo penal, ainda é a buscada nos processos administrativos.
3. Princípio da Celeridade(Art. 5º, LXXVIII da CR/88 – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.) – o processo administrativo, diversamente do judicial, tem prazo para acabar, o que será determinado em cada lei.
4. Princípio da Oficialidade– este princípio pode ser desdobrado em: impulso oficial (o processo anda independentemente de provocação da parte) e em informalismo (há formalidade, mas não como no processo judicial, apenas a necessária).
5. Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório (Art. 5º, LV da CR/88 – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;) – a ampla defesa implica no conhecimento do interessado da instauração de processo e acompanhamento dos atos, e o contraditório no direito e oportunidade de contestar, produzir provas e os recursos cabíveis, afinal o contraditório se apresenta em cada momento do processo. Segundo Odete Medauar, a observância a esses princípios implica alguns desdobramentos, são eles: defesa prévia (para isso é preciso que haja um procedimento prévio); recurso (a parte tem direito de ter a decisão revista por uma autoridade superior); provas (consiste não só no direito de produzir as provas, como também no de participar do convencimento do que foi provado); informação (o processo é público, por isso há direito de vista, o que inclui o direito de cópias) e defesa técnica. Ressalte-se que a defesa técnica prescinde da presença de um advogado, mas pode trazer maior regularidade para a construção de um processo legal.”
Então, se você for submetido a um processo administrativo tributário ou licitatório ou de expediente, etc, tem o direito de nomear até Sua Santidade, o Papa, para fazer sua defesa. Mas, se se tratar de processo administrativo disciplinar… Nem advogado de confiança, constituído por sua pessoa, é obrigatório!
Se for um caso criminal, você pode matar mil pessoas e seu direito à ampla defesa vai estar lá, garantidinho pela Constituição e pela Justiça. O problema parece residir em reconhecer direitos básicos a servidores públicos, notadamente a policiais, no âmbito disciplinar. Um problema ligado a se reconhecer que o direito à liberdade é tão importante quanto o direito a não ser subjulgado!
Vejam que coisa fantástica e democrática tem o Estatuto dos Policiais Civis capixabas:
“Do Código de Ética Policial
Art. 3º – O funcionário policial manterá observância dos seguintes preceitos de ética:
I – servir à sociedade como obrigação fundamental;
II – proteger vidas e bens;
III – defender o inocente e fraco contra o engano e a opressão;
IV – preservar a ordem, repelindo a violência;
V – respeitar os direitos e garantias individuais;
VI – jamais revelar tibieza ante o perigo e o abuso;
VII – exercer a função policial com probidade, discrição e moderação, fazendo observar as leis com polidez;
VIII – não permitir que sentimentos ou animosidades pessoais possam influir em suas decisões;
IX – ser inflexível, porém, justo, no trato com delinqüentes;
X – respeitar a dignidade da pessoa humana;
XI – preservar a confiança e o apreço de seus concidadãos pelo exemplo de uma conduta irrepreensível na vida pública e na particular;
XII – cultuar o aprimoramento técnico-profissional;
XIII – amar a verdade e a responsabilidade, como fundamentos da ética do serviço policial;
XIV – obedecer às ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;
XI – não abandonar o posto em que deva ser substituído sem chegada do substituído;
XVI – respeitar e fazer respeitar a hierarquia do serviço policial;
XVII – prestar auxílio, ainda que não esteja em hora de serviço:
1 – a fim de prevenir, ou prevenir perturbação da ordem pública;
2 – quando solicitado por qualquer pessoa carente de socorro policial, encaminhando-a à autoridade competente, quando insuficientes as providências de sua alçada.”
Agora vejam que pérolas de respeito a direitos elementares e que constituem falta grave, passíveis de demissão, no art. 192, do mesmo Estatuto:
“LX – adquirir, para revenda, de associação de classe ou entidade beneficentes em geral, gêneros ou quaisquer outras mercadorias;
LXIV – portar-se sem compostura em lugar público;
LXIX – participar de atividades político partidárias, salvo se licenciado para tratar de interesse particular, observadas as exceções previstas em lei;
LXXI – desrespeitar ou procrastinar o cumprimento de ordem judicial, bem como criticá-la;
LXXX – sindicalizar-se;
LXXXI – eximir-se, por displicência ou covardia, dos preceitos do código de Ética Policial.”
Conforme todos podem conferir, são oitenta e uma possibilidades de transgressão disciplinar, contidas no art. 192 do Estatuto, mais as dezessete contidas no Código de Ética (art. 3º do Estatuto). E a última e mais grave “transgressão” disciplinar, como todos podem ler, é: “eximir-se, por displicência ou covardia, dos preceitos do código de ética policial”. E sindicalizar-se é a penúltima mais grave. Gravíssimas!
Criticar ordem judicial também é bem grave! Este texto, portanto, faz deste signatário um possível candidato à cadeira elétrica, sem julgamento e sem advogado algum! Uma espécie de Josef K. dos tempos atuais. Josef K., para os que não se recordam, se trata de um personagem de Franz Kafka, no livro “O Processo”, que foi acusado, julgado sem participar do julgamento, condenado e decapitado, sem saber do que era acusado.
A última “transgressão” disciplinar é a que o Estado mais gosta de aplicar, por meio de autoridades arbitrárias. Assim, se não resta nenhuma forma de enquadrar os "infratores", lascam logo a famigerada “transgressão” ligada ao código de ética policial.
Em pleno século XXI, constata-se esse massacre de direitos dos policiais e ainda tolhem o direito de nomeação de um advogado para frear a sanha do Estado arbitrário e para tentar fazer frente a essas sandices legitimadas contra a categoria.
Não vamos nem falar da importância de se democratizar direitos e deveres dos servidores, em especial dos policiais, para que tenham voz e condições de denunciar abusos no Serviço Público, o que seria altamente benéfico para a democracia, para a qualidade dos serviços e para a sociedade, porque eles não estão nem aí para o povo e para a categoria.
Mas, com certeza, qualquer criminoso, por mais hediondo que seja o crime cometido, tem muito mais direitos do que os policiais para fazer suas defesas nos processos a que são submetidos.
O Estado brasileiro possui um grave problema de consciência em relação aos criminosos. Deve ser porque só condena pobre e preto. Antigamente, condenava também prostitutas. Hoje, com todo o respeito, as prostitutas estão no poder. Deram-lhes uma ideologia pra viver, como dizia Cazuza!
Mas, arbitrário como sempre, parece que o Estado quer substituir as prostitutas pelos policiais, condenando todos sem direito a qualquer defesa!
Como estamos falando demais e isso pode render uns cinquenta processos disciplinares, sem advogado, vamos direto ao assunto final: estamos vendo se conseguimos um político para apresentar no Congresso Nacional um projeto de lei garantindo o que nos foi tirado, ou seja, o obrigatório acompanhamento por advogado em todas as fases dos processos administrativos disciplinares draconianos a que são submetidos os policiais.
É o mínimo que se exige de uma sociedade e de um Estado que podem ser taxados de civilizados!
Antônio Tadeu Nicoletti Pereira