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IMPUNIDADE: VÍTIMAS NÃO DENUNCIAM CRIMES

Em Leia Mais, texto sobre os "Fatores de Pilgran"

 

Segue o texto de Luiz Flávio Gomes:

impunidade.jpg - 30.26 KbAntes, uma observação: fatou um filtro importantíssimo. Pilgran, naturalmente oriundo de lugares mais sérios, deixou de incluir o próprio Estado como fomentador número um da impunidade. Conforme já publicamos no site notícias atrás, dos 213 mil roubos, furtos e arrombamentos ocorridos no Estado do Espírito Santo (só no último ano), a perícia comprobatória da materialidade só foi acionada para periciar menos de 1% desse total. Imaginem se somarmos as demais localidadades do País quantos crimes estão ficando sem perícia. Sem dúvida, se Pilgran estivesse informado sobre esse dado alarmante, a omissão estatal figuraria como um de seus filtros mais contundentes. Estamos cuidando de levantar esses dados criminosos para enviarmos aos pesquisadores e à ONU.

 

"Impunidade e os filtros de Pilgran, por LUIZ FLÁVIO GOMES*

 

O fenômeno da impunidade está vinculado, dentre outras razões, ao da “cifra negra” (“cifra ou zona oscura”, “dark number”), que é “el terreno existente entre la criminalidad real y la registrada”. Descritivamente: “no todo delito cometido es perseguido, no todo delito perseguido es registrado; no todo delito registrado es averiguado por la policía; no todo delito averiguado es denunciado; la denuncia no siempre termina em juicio oral; el juicio oral no siempre termina em condena”.[1]

 

As características mais relevantes da cifra negra podem ser assim resumidas: “la criminalidad real es mucho mayor que la registrada oficialmente; en el ámbito de la criminalidad menos grave la cifra oscura es mayor que en el ámbito de la criminalidad más grave; la magnitud de la cifra oscura varía considerablemente según el tipo de delito; en la delicuencia juvenil es donde se da un mayor porcentaje de delicuencia con una relativamente menor cuota sancionatoria; la cuota sancionatoria es responsable también del fortalecimiento de carreras criminales; las posibilidades de quedar en la cifra oscura dependen de la clase social a que pertenezca el delinquente”.[2]

 

Seja em razão da classe social que figura como sujeito ativo, seja em razão das suas próprias peculiaridades, parece-nos fundamental distinguir (também nessa questão da impunidade) a macro-delinquência econômica (em sentido amplo) das demais formas delitivas. Os fatores que contribuem para a impunidade na macro-delinquência econômica, para além dos genéricos, são bastante específicos.[3]

 

No que se relaciona à criminalidade em geral, uma das melhores formas de explicar o fenômeno da cifra negra (e também da impunidade e da seletividade do sistema penal) provém de Arno PILGRAN, que “manifiesta que el fenómeno de selección se produce a través de un proceso de filtración escalonado, ya que más allá del propio legislador, tanto los autores como las víctimas, los testigos, la Policía, los Fiscales y los Tribunales, operan en calidad de “filtros” determinantes en la elección de cuáles acontecimientos deben ser definidos como delitos y de cuáles personas deben ser calificadas como delincuentes, con todas las consecuencias que ello implica”.[4]

 

Valendo-nos da teoria dos “filtros de PILGRAN” e fazendo as devidas adaptações à realidade brasileira, elaboramos o seguinte esboço de um decálogo dos filtros da impunidade no Brasil:

 

1 – Filtro da criminalização primária (legislativa): são inúmeras as formas que asseguram a impunidade nessa fase (da criminalização primária, que é da responsabilidade do legislador):

(a) ausência de criminalização (ex.: delitos informáticos próprios ou puros, que ainda não foram criminalizados no nosso país);[5]

(b) criminalização dúbia, confusa ou lacunosa (ex.: Lei 9.034/95, que nem sequer definiu o que é crime organizado);

(c) criminalização excessiva (quem quer abraçar o mundo não abraça ninguém): contamos hoje no Brasil com mais de mil tipos penais; o que está programado para entrar no sistema é muito superior à sua capacidade operacional; vivemos um verdadeiro caos normativo-penal[6]; a falta de técnica é patente: há crime que não é crime (Lei 1.079/50); já houve crime sem pena (Lei 8.212/91); há pena sem crime (Lei Ambiental, art. 40-A) e há pena que não é pena (pena de multa, depois do trânsito em julgado é mera dívida de valor). 

O processo inverso ao da criminalização hipertrofiada é o da descriminalização, que vem sendo viabilizada no Brasil ou por meio de medidas provisórias (ex.: MP 1710 que descriminalizou inúmeros delitos ambientais)[7] ou por meio de leis (revogação do art. 217 do CP, por exemplo, por meio da Lei 11.106/2005).

 

2 – Filtro da “notitia criminis”: descrença na Justiça, alto risco de vitimização secundária (vitimização pelo mau funcionamento do sistema penal), falta de expectativas reais, desestímulo, risco de perder dias de trabalho etc., tudo isso contribui para que a vítima não noticie oficialmente o delito. Desse modo, é certo que a própria vítima também contribui para a impunidade. 

No âmbito dos delitos informáticos, p.ex., raramente as empresas vítimas procuram os órgãos oficiais para noticiar qualquer crime. Muitos crimes cometidos dentro de empresas, aliás, não são levados ao conhecimento da polícia. Em suma, poucos são os casos oficialmente noticiados (leia-se: muitos delitos não conseguem ultrapassar a barreira da notícia oficial).

 

3 – Filtro da abertura da investigação (nem todos os casos noticiados são investigados): são incontáveis os fatores que levam à seletividade (discriminatoriedade) e, consequentemente, à impunidade nesta fase:

(a) falta de estrutura e de recursos materiais (da Polícia e do MP);

(b) falta de estrutura humana;

(c) falta de conhecimentos técnicos (sobre contabilidade, operações nas bolsas de valores, criminalidade informática, lavagem de capitais etc.) (resumindo até aqui: falta hardware, software e humanware);

(d) corrupção generalizada (o que não significa que todos os policias são corruptos);

(e) ao lado dessa “banda podre” existe, é verdade, a “banda pobre” (miserável, paupérrima), que é composta dos policiais totalmente desestimulados que vivem do “hollerith”, sem fazer “bicos”;

(f) infiltração “criminosa” de policiais no crime organizado;

(g) falta de controle funcional da polícia (o MP vem sendo omisso no seu dever constitucional de controle externo da polícia) etc.

 

4 – Filtro do insucesso investigativo (nem todos os casos investigados são devidamente apurados): a autoria e a materialidade ficam comprovadas em poucos casos:

(a) as vítimas e testemunhas às vezes não colaboram;

(b) falta de recursos técnicos (a pobreza das Polícias Científicas é franciscana);

(c) morosidade, cartorialização e burocratização do inquérito policial (na reforma do CPP são previstas várias medidas contra essa burocratização); o anacronismo do inquérito policial deriva, aliás, da sua estrutura totalmente cartorializada. É peça altamente burocratizada[8];

(d) vítimas e testemunhas são ameaçadas (crime organizado, tortura, crimes envolvendo policiais etc.);

(e) nos crimes funcionais, as investigações são corporativistas (e protetivas);

(f) nos crimes financeiros, a investigação é manipulada (80,5% são arquivados). A investigação policial funciona bem nos crimes em que o sujeito é preso ainda com o produto do crime na mão. Nos crimes que envolvem os “poderosos” há a chamada “paralisação prescricional”.[9]

 

5 – Filtro da abertura do processo: (nem todos os casos investigados são denunciados):

(a) filtro dos requisitos formais: CPP, art. 41 (denúncias genéricas, denúncia ineptas);

(b) filtro do “engavetamento” no Ministério Público (como denunciou em seu dia o Sen. Pedro Simon);

(c) filtro das imunidades (parlamentares, do Presidente da República etc.);

(d) filtro do art. 366 do CPP (suspensão do processo no caso de citação por edital) etc.

 

6 – Filtro da comprovação legal e judicial do delito (exigida pela presunção de inocência e demais garantias do devido processo legal). Nem todos os casos denunciados são comprovados:

(a) o direito exige provas lícitas, mas muitas são obtidas de forma ilícita;

(b) provas judicialmente produzidas (provas produzidas na fase investigativa, se não confirmadas em juízo não valem, salvo exceções);

(c) vítimas e testemunhas que têm medo (pouco funcionam os programas de proteção às vítimas e testemunhas);

(d) vítimas e testemunhas que desaparecem (morosidade da Justiça) ou são mortas;

(e) atraso tecnológico da Justiça (precatórias e rogatórias morosas; pouca utilização da videoconferência etc.; mesmo na era digital a Justiça criminal continua analógica).

 

7 – Filtro da “Justiça territorializada versus criminalidade globalizada”:

(a) globalização de vários crimes (narcotráfico, tráfico de mulheres, tráfico de crianças, tráfico de órgãos humanos, tráfico de armas, tráfico de animais, corrupção internacional);

(b) internacionalização do criminoso (que se tornou mais poderoso);

(c) globalização das vítimas (crimes informáticos, p.ex.);

(d) globalização dos bens jurídicos (meio ambiente, p.ex.);

(e) filtro da Justiça territorializada (versus criminalidade globalizada);

(f) Justiça global ainda pouco eficaz (TPI, que nasceu com o Tratado de Roma, de 1998);

(g) filtro da cooperação internacional (incipiente, ainda);

(h) filtro do despreparo tecnológico da Justiça criminal;

 

8 – Filtro da condenação (nem todos os casos processados são condenados):

(a) filtro da presunção de inocência (que exige provas validamente produzidas);

(b) filtro do funcionamento da irracionalidade do sistema penal etc.

 

9 – Filtro da prescrição: morosidade da Justiça versus multiplicidade de prescrições (prescrição pela pena máxima em abstrato, prescrição retroativa, prescrição intercorrente, prescrição da pretensão executória, prescrição antecipada ou em perspectiva). Na atualidade, nenhuma pena concreta até dois anos se efetiva, desde que a Defesa se valha de todos os recursos cabíveis: apelação, embargos, recurso especial, recurso extraordinário etc. Nossos Tribunais (somando os de segunda instância com os superiores) não julgam nenhum caso em menos de quatro anos, que é o prazo prescricional da pena até dois anos.

 

10 – Filtro da execução efetiva (nem todos os casos condenados são executados): Quanto à pena de prisão:

(a) filtro no trânsito em julgado (enquanto a sentença não transita em julgado o réu conta com o direito de aguardar o julgamento dos seus recursos em liberdade):

(b) filtro dos mandados de prisão não cumpridos: seletividade, corrupção (há muitos casos de réu foragido na rua tal, número tal…);

(c) filtro da “indústria das fugas” (o réu cumpre a pena se não quiser fugir);

(d) filtro da inexistência de estabelecimentos prisionais em número suficiente para abrigar todos os presos (fechado, semi-aberto e aberto) etc.

Quanto às penas alternativas:

(a) filtro da inexistência de fiscalização (a solução está na criação de Varas Especializadas e Centrais de Acompanhamento e alternativo cumprimento do art. 48 do CP);

(b) há “becos sem saída” (descumprimento da transação penal nos casos do art. 28 da Lei de Drogas, p.ex.);

(c) filtro da (adequada) individualização da pena (aplicação de multa a quem não tem a mínima condição de pagar: nem pagamento espontâneo, nem pagamento em parcelas, nem desconto nos vencimentos, nem desconto no salário, nem penhora de bens imóveis, nem penhora de bens móveis). A população, desesperada, totalmente incrédula, sem ter a mínima idéia da quantidade enorme de fatores que contribuem para a impunidade e sem ter a mínima idéia de como combatê-los, pede o irracional (pena de morte), o inconstitucional (prisão perpétua), o absurdo (agravamento de penas, mais rigor na execução) e o aberrante (diminuição da maioridade penal). Percebe a anomia e pede mais leis! Percebe que o Direito penal não funciona, mas crê que o problema está na pena anterior fixada (que foi insuficiente). O Poder Político (muitas vezes demagogicamente), por seu turno, atende (Lei dos Crimes Hediondos, p.ex.) ou faz gestos de que vai atender todos ou alguns desses atávicos e emocionados reclamos. O problema da criminalidade (e da sua impunidade) é muito mais complexo do que o imaginário popular alcança enxergar, é muito mais profundo do que o simbolismo e a simplicidade das medidas legais. Até quando perdurará a ignorância? Quousque tandem abutere patientia nostra ? “Até quando os que detêm o poder abusarão da nossa paciência?” com medidas puramente placebentas (sem nenhuma eficácia prática)? Veja também: Os políticos reagem contra a projeção da realidade, não contra a realidade Mídia e ciência criminal: artes complementares."

 

*LFG – Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Blog: www.blogdolfg.com.br. Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Encontre-me no facebook. [1]Cf. HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco, Introducción a la criminologia y al derecho penal, Valencia: Tirant lo blanch, 1989, p. 47. [2]Cf. HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco, Introducción a la criminologia y al derecho penal, Valencia: Tirant lo blanch, 1989, p. 47. [3]Cf. GOMES, Luiz Flávio, Sobre a impunidade da macro-delinqüência econômica desde a perspectiva criminológica da teoria da aprendizagem, em RBCCrim n. 11, ano 3, jul-set/95, p. 166 e ss. Estou atualizando esse artigo e pretendo republicá-lo em breve. [4]Citado por CERVINI, Raúl, Los procesos de decriminalización, 2ª ed., Montevideu: Editorial Universidad, 1993, p. 139. [5]De todos os Projetos que tramitam no Congresso Nacional o mais completo a respeito desse tema é de autoria do Dep. Luiz Piauhylino (PSDB-PE) (PL 84/99). Já foi aprovado em praticamente todas as Comissões da Câmara dos Deputados e certamente não tardará muito para ser aprovado por essa Casa Legislativa. [6]No âmbito dos crimes contra o consumidor, por exemplo, temos: Lei 1.521/51 (Crimes contra a economia popular), Código Penal, Lei 8.137/90 (arts 7º), Código de Consumidor etc. Em virtude do excesso de leis, muitas vezes há enorme dificuldade em se saber qual é o tipo penal adequado em cada caso concreto. [7]Antigamente quem tinha poder para “sensibilizar” o legislador, tinha que convencer todo o Congresso Nacional para aprovar algo em seu benefício. Hoje tudo ficou simplificado: basta convencer o assessor do Presidente da República que redige Medidas Provisórias. Estas, como sabemos, podem beneficiar o réu. Nunca pode criar crime ou pena ou mesmo restringir direitos fundamentais. Mas tem valor para favorecer o acusado. [8]Na Reforma do CPP, dirigida pela Profa. Ada Pellegrini Grinover (todos os projetos estão neste momento  setembro de 2001  em poder do Dep. Ibrahim Abi Ackel, que é o relator da matéria), há inúmeras sugestões de simplificação do inquérito policial: uso de meios eletrônicos para gravar depoimentos, colheita da prova fora da unidade policial etc. [9]No caso PCFarias muitas empresas ou empresários de grosso calibre (Votorantin, v.g.) deram-lhe dinheiro e na ocasião foi instaurado inquérito para apurar a responsabilidade penal desses “corruptores”: até hoje não se tem notícia de qualquer evolução. É exemplo típico de “paralisação prescricional”.

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